Comentário: Paz não, mas uma espada sim

Por William Safire, do The New York Times :: 20:03 01/03

WASHINGTON - A palavra "paixão" tem raiz no equivalente latim para "sofrer". O filme de Mel Gibson sobre a tortura e agonia das horas finais de Jesus é o exemplo mais sangrento e brutal de sadismo sustentado já presente nas telas dos cinemas.    

Pelo fato de a projeção de alguém ferido do diretor encontrar uma desculpa em um propósito religioso - para mostrar quão terrivelmente Jesus sofreu pelos pecados da humanidade - a proibição contra a violência do filme foi radicalmente reduzida. A mutilação em filmes, há muito evitada pelos pais, encontrou seu espaço; agora, outros em Hollywood encontrarão meios de superar o arrasa-quarteirão de Gibson, de fornecer meios para os voyeurs da violência e, assim, de tornar um derramamento de sangue banal.

Quais são os propósitos dramáticos desta descrição de dor e crueldade? Primeiro, o choque; o público do qual fiz parte engasgou no primeiro corte da carne. Depois, a pena resultante de um sofrimento prolongado. E, finalmente, o horror: quem foi responsável por essa humilhação cruel? Que vilão merece ser punido?

Não Pôncio Pilatos, o romano encarregado; ele e sua mulher gentil são personagens simpáticos. Nem o rei Herod, mostrado como culpado.

O vilão ao qual se dirige a raiva do público são os atores que representam rabinos sedentos de sangue e seus radicais seguidores judeus. Esta é a essência da "peça apaixonada" medieval, preservada na Alemanha pré-Hitler em Oberammergau, uma fonte do ódio de todos os judeus como "assassinos de Cristo".

Muito do ódio se baseia em uma linha do testamento de São Mateus, após o governador romano lavar suas mãos e se livrar da responsabilidade por ordenar a morte de Jesus, quando a multidão chora: "Que seu sangue esteja em nós, e em nossos filhos".

Embora não mencionada nos testamentos de Marcos, Lucas ou João, aquela linha em Mateus - abraçada com um júbilo furioso por anti-semitas através dos tempos - está bem aqui no Novo Testamento. Gibson e seu roteirista não inventaram isso, nem deturparam a responsabilidade do apóstolo pela aversão do governador romano à injustiça.

Mas os tempos bíblicos não são os tempos atuais. Essa linha inflamatória em Mateus - e os milênios de perseguição, bodes expiatórios e, no final das contas, o genocídio que correu parcialmente a partir de sua repetição maligna - foram finamente conduzidos pela Igreja Católica nas décadas após a derrota do nazismo.

No histórico Segundo Conselho do Vaticano de 1965, durante o papado de Paulo VI, a igreja decidiu que enquanto alguns líderes judeus e seus seguidores haviam pressionado a morte de Jesus, "ainda assim, o que aconteceu em sua paixão não pode ser uma acusação a todos os judeus vivos na época, indistintamente, nem contra todos os judeus de hoje".

Houve uma mudança de rumos na interpretação doutrinária dos testamentos, e o começo de um grande progresso entre crenças.

Contudo, um grupo de católicos rejeita isso e outras propriedades do Segundo Conselho do Vaticano. Segundo informações, Gibson está alinhado com esse clique reacionário (E seu pai também, um negador declarado do Holocausto; mas o filho alerta os entrevistadores a não irem lá. Eu concordo; a geração mais recente não deve ser responsabilizada pelos pecados dos pais).

Em uma propaganda habilidosa para o lançamento do filme, os agentes de Gibson declararam que ele concordou em remover essa maldição antiga do roteiro. Isso não está nas legendas que vi na outra noite, apesar de que ainda possam estar no áudio em aramaico, caso no qual certamente será traduzido nas versões estrangeiras.

E é aí que está o problema. Em um momento no qual uma onda de violência anti-semita está varrendo a Europa e o Oriente Médio, será que a religião está bem servida pela atualização das peças de paixão, de perseguição de judeus de Oberammergau em DVD? Será que a arte está sendo servida ao apresentar a antiga discórdia na mídia de sangue corrente para as maiores audiências da história do drama?

Em 10:34, Mateus cita Jesus falado a seus apóstolos de maneira não característica: "Não pensem que eu venho para enviar a paz sobre a Terra: eu vim não para mandar a paz, mas uma espada". Você não vê isso em cartões de Natal e isso não está neste filme, mas tais palavras podem ser reinterpretadas - leia hoje para entender que a paz interior vem somente após uma batalha moral.

A riqueza da Bíblia está em sua abertura à interpretação, respondendo às necessidades espirituais atuais da humanidade. É aí que a versão medieval de Gibson do sofrimento de Cristo, desvairando-se na selvageria para provocar horror e espalhar a culpa, reprova os cristãos e judeus de hoje.

Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/useg/nytimes/artigo/0,,1533015,00.html

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