Painel religioso tem os mesmos temores sobre "A Paixão de Cristo"

Por Laurie Goodstein :: 19:20 25/02

CHICAGO - Um grupo de oito cristãos, judeus e agnósticos que se juntaram para assistir a "A Paixão de Cristo" na noite de segunda-feira admitiu que tinham expectativas muito diferentes para o filme. O sacerdote grego-ortodoxo disse que estava predisposto a gostar dele; o ministro metodista e o padre católico romano estavam curiosos, mas desconfiados de suas alegações de autenticidade religiosa; e os judeus estavam receosos de que ele inflamaria o anti-semitismo.   

Mas após a exibição, em uma discussão tarde da noite ao redor de uma mesa na Primeira Igreja Metodista Unida no Templo de Chicago, os membros do painel estavam em total acordo: eles estavam perturbados com o que viram. O filme, disseram eles, desviou por caminhos bizarros dos relatos do Novo Testamento, tombou emocionalmente e estava extremamente violento.

Os cristãos afirmaram estarem consternados em ver o inspirador profeta Jesus reduzido a uma mera vítima. Os judeus disseram estar horrorizados em ver os grandes sacerdotes judeus retratados como tramadores sedentos de sangue exigindo a morte de Jesus por causa dos protestos de um simpático Pontius Pilate, o governador romano.

"'O Último Samurai' me comoveu mais do que esse filme", comentou o reverendo Robert H. Oldershaw, pastor da Igreja Católica St. Nicholas em Evanston, Illinois, referindo-se ao filme de Tom Cruise. "Mel Gibson diz que esta é uma interpretação literal. Não é. É a interpretação de Mel Gibson".

O reverendo Philip L. Blackwell, pastor sênior da Primeira Igreja Metodista Unida, disse: "Eu me vi distanciado de Jesus por causa da violência. Eu não pude me identificar com ele". Ele e outros disseram que se viram olhando para os seus relógios durante a exibição, pois acharam o filme entediante.

Durante meses, Mel Gibson construiu uma audiência para o seu filme o mostrando para públicos simpáticos ao cristianismo. Muitos convidados eram evangélicos e alguns eram católicos, mas a maioria era de teólogos ou conservadores sociais que compartilhavam a percepção de Gibson de que Hollywood odeia os cristãos. Muitos desses primeiros expectadores apareceram chamando o filme de uma experiência espiritual transcendente, e prometeram fazer com que o público pensasse isso também.

Porém, com a estréia nacional do longa-metragem na quarta-feira, uma nova onda de norte-americanos religiosos que foram excluídos das exibições promocionais estão agora tendo uma nova visão, e a julgar pelo grupo aqui, suas reações podem não ser tão uniformemente positivas. Aqueles ao redor da mesa aqui, que se reuniram a pedido do The New York Times, não fingiram falar em nome de todos os norte-americanos religiosos, mas eles representam um grupo que estudou o Evangelho, devotos em suas próprias fés e preocupados com o futuro de suas relações inter-religiosas.

O diálogo de mesa redonda também foi um precursor de eventos similares que estão prestes a acontecer em todo o país, todos provocados pela controvérsia sobre o filme. As oito pessoas que se reuniram para discutir o filme aqui tinham acabado de comparecer a uma exibição organizada pelo escritório de Chicago do Comitê Judaico Americano em colaboração com algumas igrejas. Cerca de metade dos membros da platéia eram judeus, e a outra metade, de cristãos.

Diversos deles saíram durante a projeção. Uma, cristã, disse aos seus companheiros que ela não agüentava a violência.

Os líderes cristãos e judeus estão planejando diversos eventos com interfé para as próximas semanas, em igrejas, sinagogas e universidades. Eles estão usando o filme para reavaliar tópicos como a evidência histórica sobre a morte de Jesus, o papel da Paixão no ódio desenfreado dos judeus, e os ensinamentos do Vaticano da Igreja Católica que absolveu os judeus coletivamente da acusação de deicídio.

Após meses nos quais alguns importantes líderes judeus denunciaram o filme e rogaram que Gibson fizesse alterações, outros concluíram que a estratégia mais eficiente é usar o filme como uma ocasião para reafirmar o progresso nas relações entre fés durante os últimos 40 anos.

Em uma posição similar, os bispos católicos romanos dos Estados Unidos acabaram de lançar um novo livro, "A Bíblia, os Judeus e a Morte de Jesus: Uma Coleção de Documentos Católicos", que reúne trechos de ensinamentos teológicos de Judeus, peças da Paixão e anti-semitismo.

Na Igreja Metodista, após o filme, sobre pratos de biscoitos, Emily D. Soloff, diretora executiva da assembléia religiosa de Chicago do Comitê Judaico Americano, admitiu para as pessoas ao redor da mesa que a maneira como os judeus foram retratados no filme de Gibson "me fez contorcer".

Outros judeus e alguns cristãos na mesa concordaram. Eles disseram que estavam apavorados pelas cenas durante uma ingovernável multidão de judeus, sobre como os sacerdotes judeus pareciam como rabinos modernos com barbas longas, alguns nos mantos de orações listrados de azul ainda usados por judeus contemporâneos.

"Esse filme tem o potencial de minar o progresso que nós fizemos nas relações entre judeus e cristãos", afirmou Soloff. Ela disse que não receava como o filme afetaria os líderes cristãos e judeus que trabalharam na construção de pontes, mas com aqueles não trabalharam.

"Eu estou preocupada com o filme como um artefato da cultura popular. Quantas pessoas pensam em Charleton Heston como Deus? Este é um péssimo filme para se tornar sua imagem padrão dos judeus", acrescentou ela.

Com a crítica contra o filme crescendo nas últimas semanas, Gibson tentou suavizar os temores de alguns judeus removendo da edição final a declaração do grande sacerdote judeu Caifás, "Que seu sangue esteja sobre de nós e sobre nossas crianças". A fala é do Livro de Mateus e foi freqüentemente citada como a fonte definitiva para a acusação de deicídio contra os judeus.

Porém, Gibson retirou a fala somente das legendas, não do filme, afirmou o rabino David Sandmel, da Congregação KAM Isaiah Israel, em Hyde Park, e professor de estudos judaicos da União Teológica Católica. O diálogo do filme é em aramaico e latim, e para aqueles que sabem aramaico, ainda é possível ouvir a multidão judia gritando a maldição em curse aramaico, disse Sandmel.

"O que acontece quando isso aparecer na edição do diretor em DVD?", questionou ele, ou quando ele for traduzido para o lançamento em outros países. "Trata-se do verso clássico usado em séculos de peças da Paixão" considerado tão ofensivo que foi removida após consultas com judeus da mais famosa peça da Paixão, em Oberammergau, explicou ele.

Gibson descreveu seu filme como um verdadeiro relato das últimas 12 horas da vida de Jesus. Mas os sacerdotes cristãos e judaicos na mesa ficaram perturbados pelos enfeites que, segundo ele, não tinham base no Testamento.

Entre eles: Jesus é levado para o templo para ser condenado pelos padres. Um corvo arranca o olho do ladrão sendo crucificado na cruz ao lado de Jesus. E a esposa do governador romano Pilate traz uma pilha de lençóis limpos para que Maria limpe o sangue de Jesus do chão após ele ser brutalmente espancado e torturado pelos sádicos soldados romanos. A gesto ressalta o tratamento simpático do filme a um governador romano tão brutal, que depois foi deposto de seu cargo.

O reverendo Demetri C. Kantzavelos, chanceler da Diocese Grega Ortodoxa de Chicago, ficou perturbado pelos atores do filme falarem latim, e não grego, a língua franca. Imprecisões como essa, segundo ele, minam as alegações de Gibson de autenticidade.

"Eu vim predisposto a gostar. Eu realmente queria gostar do filme, e eu não gostei", comentou Kantzavelos.

Ele e outros membros do clérigo cristão concordaram que o filme é baseado em uma "teologia de expiação" familiar aos evangélicos - teologia essa que enfatiza o sofrimento e sacrifício de Jesus sobre sua ressurreição. Eles notaram que o filme começa com uma passagem de Isaías: "Com suas chicotadas nós somos curados".

Blackwell, o pastor metodista, afirmou: "se a sua teologia é sangue, e você foi purificado pelo sangue, então quanto mais sangue e sofrimento, tanto melhor porque mais salvação haverá nisso. Se esta é sua teologia, quanto mais chicotadas, tanto mais você é curado".

"Para mim, a questão é, a violência exagerada é redentora?", perguntou Blackwell. "O qeu aconteceu com a pregação reveladora de Jesus e seu amor?".

Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/useg/nytimes/artigo/0,,1527707,00.html

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