A
religião e a mitologia de Matrix
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Por Érico Borgo |
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Em 1999, Matrix sacudiu Hollywood com espetaculares
efeitos especiais que revolucionaram o cinema de ação. Porém, muito
mais que encher os olhos dos espectadores com seqüências de imagens
jamais vistas na tela grande, o filme garantiu aos mais interessados
material para um caloroso e interessante debate, algo que já dura quatro
anos e promete se estender por décadas, a exemplo de outros grandes clássicos
da ficção científica como 2001 - Uma odisséia no espaço (2001:
A Space Odyssey, de Stanley Kubrick, 1968) ou Blade Runner - O caçador
de andróides (Blade Runner, de Ridley Scott, 1982). Dentre os aspectos mais empolgantes de Matrix estão a utilização
de simbolismos religiosos como embasamento para as idéias propostas na
história. Os enigmáticos irmãos Wachowski, criadores e diretores
da série, nunca gostaram de comentar a esse respeito. Porém, num raro chat
com os fãs há alguns anos, a dupla revelou que absolutamente todas as
referências foram cuidadosamente plantadas e intencionais, incluindo
todos os nomes de personagens, e que todas elas têm múltiplos
significados. "Matrix é o resultado da soma de cada uma das idéias
que já tivemos", disse Larry Wachowski. É difícil não acreditar na afirmação depois de pesquisar um pouco
sobre a mitologia existente no filme... um verdadeiro caldo de idéias
filosóficas e religiosas. O que
é a Matrix? Antes de se aprofundar nos simbolismos que permeiam toda a série, é
preciso lembrar da resposta para a pergunta essencial do filme: O que
é a Matrix? No filme, a Matrix é um mundo dos sonhos gerado por computador, um
gigantesco sistema de realidade virtual que simula o nosso mundo como é
hoje e conecta toda a humanidade adormecida, mantida sem consciência de
sua própria realidade. Todas as pessoas do planeta (exceto um grupo de
rebeldes que habita o subsolo da Terra) foram escravizadas há uma centena
de anos, depois de uma sangrenta batalha que foi vencida por máquinas
dotadas de inteligência artificial. Os humanos são utilizados como fonte
primordial de energia pelas máquinas, impossibilitadas de usarem a
energia solar, que não penetra mais na atmosfera Catolicismo
em Matrix As analogias de Matrix com as religiões começam fáceis. Boa parte
das pessoas que viram o filme devem ter notado a presença de elementos
cristãos na produção. Na mais óbvia delas, Neo (Keanu Reeves)
morre, ressuscita e ascende aos céus. Jesus Cristo? Pode apostar que sim.
Neo é O Messias, O escolhido, aquele da qual falam as profecias e cuja
vinda é preparada por Morpheus (Lawrence Fishburne), que por sua
vez cumpre o papel no filme que na Bíblia é de João Batista. O
personagem, cujo nome é o mesmo do deus grego dos sonhos (mais uma
simbologia inteligente), aguarda pacientemente a vinda do Messias, que
poderá submeter a Matrix às suas próprias regras, reprogramando-a a
partir de dentro. Em outras palavras, realizar milagres. A ligação de Neo com a figura do Messias cristão é reforçada no
filme de inúmeras maneiras. "Aleluia! Você é meu salvador,
cara. Meu Jesus Cristo particular", exclama Chad, um comprador de
softwares ilegais de Neo, enquanto ainda era Thomas Anderson, um
programador no mundo real. Na nave Nabucodonosor (batizada com o
nome de um rei babilônico responsável pela destruição do templo de
Jerusalém para colocar o povo de volta no verdadeiro caminho de Deus), a
tripulação, maravilhada com os feitos de Neo, exclama com freqüência "Jesus
Cristo" ou "Cristo". É no veículo também que
está gravada a inscrição "MARK III nº11", referência
messiânica do Evangelho de Marcos 3:11, que diz "E quando os espíritos
impuros o viam, se jogavam gritando: `Tu és o filho de Deus`". Depois de Neo, o nome Trinity (em português Trindade) - que
significa o conceito de Pai/Filho/Espírito Santo - sugere outro elemento
católico. Todavia, tem implicações mais profundas, que derivam do
significado convencional da palavra, algo justificado no primeiro diálogo
da personagem com o escolhido: "Você é A Trinity? Jesus... é
que pensei que fosse um homem", diz surpreso Neo. "A
maioria dos homens pensa assim", revela a hacker,
sugerindo que a utilização de seu nome não deriva da maior fé em
atividade no planeta, na qual a trindade é essencialmente masculina. Mãe,
filha e espírito santo? As feministas devem ter delirado. ;-) Merecem destaque ainda o fato da primeira Matrix ter sido concebida
como um lugar ideal - um paraíso - que foi rejeitado pelos humanos (a
história de Adão e Eva) e os nomes Apoc (abreviação de
Apocalipse), Zion (Sião, a Terra Prometida para os judeus) e, o
mais interessante, Cypher (interpretado por Joe Pantoliano) - cujos
atos refletem a traição de Judas na Bíblia. Cypher, que quer dizer
"codificador", também espelha a natureza do personagem: alguém
que não pode ser decodificado/entendido. Gnosticismo Porém, apesar dos elementos descritos acima serem essencialmente cristãos,
a analogia entre o sistema da Matrix e as crenças religiosas pouco se
utiliza dessa fé. A fundamentação para o funcionamento da câmara de
sonhos parece mais calcada nas filosofias gnóstica e budista, em eterno
questionamento da realidade como a vemos. O gnosticismo foi uma sistema religioso que floresceu entre os séculos
II e V e tinha seus próprios rituais e escrituras, sendo a principal
delas o Evangelho de Tomás. No mito gnóstico, o Deus Supremo é
absolutamente perfeito, reside no paraíso, e abaixo dele estão outros
seres divinos - sem gêneros distintos -, que têm o poder de gerar
herdeiros, também divinos e perfeitos, quando unidos em par. Todavia,
quando um deles - Sophia - decide dar à luz uma entidade sem o auxílio
de outra divindade, surge Yaldabaoth - um herdeiro aberrante,
imperfeito, que é jogado fora numa região separada do universo. Tal
divindade solitária acaba acreditando que é o único Deus existente e
decide criar anjos, a Terra e as pessoas. Tal decisão acaba privando os
humanos - também criações divinas - de seu reino de direito, o paraíso,
mantendo-os presos num mundo material terrível. As referências ao gnosticismo em Matrix vão além do simples
fato de que os humanos são tratados como prisioneiros em um mundo no qual
não escolheram viver - e do qual precisam despertar. As próprias inteligências
artificiais parecem refletir o deus aberrante criado por Sophia. Os robôs
pensam e existem, mas não têm espíritos. Como Yaldabaoth, criam sua própria
raça e mundo - a Matrix. É só quando Neo toma consciência da
fragilidade desse mundo imperfeito e de sua condição de entidade divina
que consegue quebrar as regras e passa a operar milagres, tornando-se o
salvador de sua raça. Vale notar também que Thomas Anderson - o nome de
batismo de Neo - significa ANDER (homem) + SON (filho), ou
seja, filho do Homem; e Thomas ou Tomás é o nome do autor do Evangelho
fundamental do gnosticismo. Alguns autores vão ainda além e atribuem parte da própria criação
do efeito bullet time (aquelas seqüências congeladas baseadas nos
animês e HQs, nas quais a câmera dá até uma volta 360º ao redor dos
objetos em cena) ao gnosticismo. É que nos mitos dos gnósticos, as
divindades mais elevadas conseguem tornar-se imóveis e silenciosas, sem
qualquer medo, através de concentração e meditação.
"Concentre-se, Trinity", pede Morpheus à sua aliada em
determinado momento do filme. Todavia, concentração e imobilidade também são encontradas em outra
filosofia religiosa cuja presença é maciça no filme - o budismo. O
budismo em Matrix Logo depois de ser proclamado o "Jesus Cristo particular" de
seu comprador, Neo lembra-o que aquela transação é ilegal, ao que ele
responde: "Isso nunca aconteceu. Você não existe".
Trata-se da idéia budista da Vacuidade ou Vazio: a não-realidade do
indivíduo e dos fenômenos, prenúncio precoce do que ainda está por
vir. Matrix reflete nas telas o Samsara, o ciclo
budista de morte e renascimento no qual a existência é
considerada uma ilusão, palco de sofrimento e a frustração engendrados
pela ignorância e pelas emoções conflituosas. Através de meditação,
os monges budistas têm como objetivo escapar desse ciclo, atingindo a
iluminação, o estado além do sofrimento. Também conhecida como Budeidade - estado que requer generosidade,
disciplina, paciência, perseverança, concentração e o conhecimento
transcendente - a busca é a meta de Morpheus para Neo. O capitão da
Nabucodonosor já está desperto e optou por auxiliar outros a
despertarem, ao invés de desfrutar de sua própria iluminação. No jargão
budista ele representa um Bodhisattva e vê em Neo (anagrama para
"One" - Um, único) algo mais que um semelhante... alguém que
é a reencarnação do humano que no passado transcendeu o conhecimento e
controlou a Matrix. A idéia é reforçada em pelo menos três passagens de
morte/renascimento. A primeira é a vida de Thomas Anderson. A segunda é
o despertar de Neo para a vida real em seu útero mecânico na Matrix. A
última é a "morte" de Neo nos dois mundos e seu renascimento
como um novo ser, capaz de reprogramar a realidade da Matrix. O sistema de
reencarnação também é sugerido na explicação do funcionamento da
Matrix. Nela, os humanos mortos são liquefeitos e usados para alimentar
os demais... num eterno ciclo de reaproveitamento. Todavia, um importante ideal budista não é respeitado no filme.
Trata-se da doutrina da não-violência, na qual é ensinada que nenhuma
vida deve ser prejudicada. Obviamente, um filme de ação não
sobreviveria em Hollywood sem tiros, armas e mortes, numa triste constatação
que a iluminação ainda está bem longe de ser alcançada por nós. Reloaded Todas as informações acima meramente arranham os simbolismos
religiosos em Matrix. Há dezenas de outras menções mitológicas/religiosas,
algumas simples - como a inscrição "Conhece-te a ti mesmo",
do Oráculo de Delfos, na casa da Oráculo - e outras
paradoxais - Zion é sugerido como o Paraíso, mas fica nas profundezas
ardentes do planeta, onde seria o Inferno. O fato dos humanos terem
arruinado o próprio planeta e serem responsáveis diretos pelo caos do
futuro também faz pensar... Em Matrix Reloaded, segundo filme da série, algumas das idéias até dispostas são reforçadas. Neo, por exemplo, experimenta a vida do Messias e tem até mesmo seguidores! Surgem também outras idéias, novas e ainda mais complexas, enquanto outras, que o público parecia finalmente ter entendido, caem por terra de maneira chocante. Enfim, uma análise completa das referências religiosas da saga só será possível no final do ano, com o lançamento de Matrix Revolutions, e depois de algumas sessões e muita conversa sobre a saga. Será uma longa espera até novembro. |