LIÇÃO 1 – O PROPÓSITO DO EVANGELHO DE JOÃO

Dr. José Carlos Ramos
D.min., é professor de Daniel e Apocalipse

Parte Introdutória às 13 Lições:

Os Evangelhos não devem ser considerados meras biografias de Jesus. São antes tratados teológicos fundamentados na vida, morte e ressurreição dAquele que foi enviado por Deus para redimir a raça perdida. Cada qual descreve a trajetória do Mestre desde seu próprio ponto de vista (embora os três primeiros a tenham numa forma mais ou menos comum), sob diferentes perspectivas, com diferentes propósitos e determinadas ênfases, endereçando o material a diferentes audiências vivendo situações peculiares. O perfil do Mestre retratado em cada Evangelho vem acudir o ser humano em suas múltiplas e diferentes necessidades. A imagem quádrupla de Jesus, traçada pelos evangelistas, realça o Cristo sem fronteiras, o Salvador da humanidade em todas as épocas e lugares, Aquele que pode socorrer o homem em todas as suas demandas.

João nos oferece o quadro mais profundo e espiritual de Jesus. Foram mais ou menos 60 anos de reflexão no significado da vinda do Filho de Deus ao mundo, que, somados ao influxo do Espírito Santo, resultaram numa obra que exaltou a Cristo acima de tudo e de todos, e O apontou como o único meio de Deus descer até nós, tanto quanto de subirmos até Ele. Esta profundidade é tão imensurável que uma simples frase, ou o relato de um pequenino incidente, pode estar eivado de um importante sentido teológico, tanto quanto seria dito de um conteúdo mais largo, contendo a narrativa de um milagre, ou de um discurso proferido por Jesus. João foi hábil em demonstrar que mesmo os pequenos detalhes ligados a Cristo são de infinita grandeza. Não é por mero acaso que os pais da Igreja o chamaram de o Teólogo.

João nos oferece um quadro completo da pessoa de Jesus. Aquele que estava com Deus, e desceu para estar conosco, retornou para Deus (1:1 e 14; 3:13; 7:33; 13:1, 3 e 33; 16:28; 17:5 e 13). Em outros termos, as três fases específicas da realidade de Cristo são referidas: pré-encarnação, encarnado e pós-ressurreição, com ênfase na segunda.

A introdução geral nos lembra, de passagem, que milhares de páginas sobre a vida de Jesus já foram escritas. João também poderia nos ter legado algo bastante extenso sobre essa vida, não o fazendo, talvez, por amor à objetividade e ao imprescindível. E se o fizesse, possivelmente não nos brindaria com um material mais profundamente significativo. De fato, volumosas biografias de Cristo têm sido escritas, mas quem conseguiu avançar como João? Ele foi suficientemente capaz de dizer muito escrevendo pouco.

Introdução

A lição começa aludindo ao desejo que todos os que amam a Jesus têm de um relacionamento pessoal, direto com Ele, tal como os apóstolos mantiveram por três anos e meio. Ela se refere também às possíveis e benditas implicações de algo assim. Evidentemente, esse anseio será plenamente satisfeito, além do que se possa imaginar, na eternidade, com a restauração de tudo o que o pecado pôs a perder.

Segundo o Evangelho de João, todavia, o retorno de Jesus ao Céu não significa que Ele nos deixou. Ao contrário, Sua união de volta com o Pai garantiu-nos a vinda do Espírito Santo, cuja presença e operação franqueiam uma intimidade pessoal com Jesus, tão mais intensa do que quando esteve conosco (ver lição 11). Em outras palavras, pela fé, temos acesso agora àquela comunhão que, de forma plena e culminante, está reservada para quando a eternidade chegar. Isto é parte da soteriologia joanina, referida na perspectiva de uma escatologia já realizada: a salvação é dom outorgado, cujas bênçãos podem ser antegozadas, ou usufruídas no presente.

Domingo – Como os Evangelhos foram escritos

Os adventistas do sétimo dia acreditam na inspiração bíblica; não a aceitam, entretanto, como sendo de natureza verbal. Deus poderia, por exemplo, ter ditado a Lucas o que ele deveria escrever sobre a vida de Jesus; mas não o fez. Dirigiu-o na pesquisa e coleta de informações, bem como no arranjo e distribuição dos dados de forma que tivéssemos uma apropriada narrativa do que ocorreu, tal como seu Evangelho dispõe. O prólogo dessa obra fala de documentos prévios fundamentados em informação de testemunhas oculares e de pregadores da Palavra; esses documentos bem podem ter sido usados como material de consulta pelo escritor. Se naquele tempo, tal como hoje, os escritores abrissem uma seção bibliográfica ao final, teríamos, sem dúvida, uma extensa lista concluindo o terceiro Evangelho. Além disso, Lucas se valeu, ele próprio, do depoimento verbal dessas testemunhas, entre elas, indubitavelmente Maria, mãe de Jesus, e outras mulheres.

É próprio que pensemos isto do terceiro Evangelho, mas não do quarto. Não acredito que o escritor deste tenha contado com a contribuição informativa de terceiros, mesmo porque quando escreveu o evangelho (ver lição de terça-feira) não havia outro contemporâneo de Jesus além dele; ademais, reunia ele um conhecimento pessoal de Jesus e de Sua história suficiente para produzir a obra que escreveu. Há claros indícios nela de que ele realmente foi uma testemunha ocular dos fatos narrados (ver 1:14; 19:35; 21:24; cf. I João 1:1). Ele é natural e espontâneo na apresentação de pormenores nos episódios. Há igualmente indícios de que, sendo testemunha ocular, o escritor pertenceu ao grupo dos apóstolos, em vista dos detalhes apresentados com precisão. Mais que um dos apóstolos, ele foi um dos três íntimos de Jesus, Pedro e Tiago sendo os outros dois. João é o seu nome.

Referindo-se à limitação do quarto Evangelho, as palavras de 21:25 [Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos.] são tomadas como hipérbole. Prefiro aceitá-las literalmente já que a revelação de Deus em Cristo foi total (14:9), e, portanto, infinitamente além do que as palavras humanas poderiam descrever.

Segunda – Selecionando com um propósito

A exigüidade do material narrativo no Evangelho (o equivalente a 29 dias do ministério de Jesus, como observa a Lição) é clara evidência de que o livro é mesmo um tratado teológico e não uma simples biografia. João silencia totalmente sobre o nascimento, a infância, a adolescência e juventude de Cristo; ou seja, a maior parte de Sua vida, e mesmo de Seu ministério, como a Lição observa, simplesmente foi omitida.

A seleção de material se deveu aos propósitos do escritor; o principal deles está em 20:30 e 31: incentivar os leitores a crer para que alcancem a vida eterna. Em decorrência desse propósito, outros, que chamaríamos secundários, teriam sido perseguidos. Estudiosos do Evangelho sugerem os seguintes: combate a heresias (gnosticismo e messianismo paralelo de seguidores de João Batista), apologia contra os judeus, complementação aos Evangelhos Sinóticos, reforço do conceito da escatologia realizada, combate a idéias que exageravam ou rebaixavam o valor do batismo e da santa ceia, e apelo evangelístico ao mundo helênico. Portanto, o "vós" do verso 31, pode primeiramente fazer alusão a leitores de mentalidade helênica.

A declaração do propósito é antecedida pelo episódio da incredulidade de Tomé, que ironicamente abriu espaço para a mais completa profissão de fé do Evangelho: "Senhor meu e Deus meu!" (20:24, 25 e 28). Em João os verdadeiros discípulos são aqueles que podem discernir a divina condição de Cristo (e para tal, não precisam da presença pessoal de Jesus). É verdade que essa percepção alcançou seu clímax após a ressurreição, mas desde o princípio de Seu ministério, eles tinham fé a ponto de reconhecê-Lo como Filho de Deus (1:49) e contemplar a Sua glória (2:11).

Fé e visão corretas (a visão que Tomé quis exercer não era a adequada) aparecem igualmente dependentes uma da outra. Crer é o meio, por um lado, para que alguém possa ver a glória de Deus (11:40); por outro lado, fé é a positiva reação à experiência de ver (1:50).

Isso é particularmente verdade com respeito aos milagres que João seleciona em seu relato, milagres que os discípulos testemunham não apenas com o olho físico, mas com intuição espiritual, e os levam a aceitá-los como sinais de Sua glória (2:11). Os que vêem apenas um milagre não chegam à fé esperada.

Conforme o ministério de Jesus é cumprido, a revelação de Seu próprio Ser e a conseqüente correta percepção dEle originam um crescendo do crer que culmina na mencionada confissão de Tomé. Aqui a apreensão de Sua glória alcança seu clímax e o discípulo revela uma fé que Jesus almeja ver em cada um de Seus seguidores: "Porque Me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram" (20:29), isto é, felizes aquele que sem verem o que Tomé viu chegam a crer como ele creu.

Terça – Época

Segundo alguns estudiosos, o capítulo 21 é um apêndice que teria sido escrito por um discípulo de João logo após a morte deste, para explicar a aparente dificuldade com o verso 22. [Respondeu-lhe Jesus: Se eu quero que ele permaneça até que eu venha, que te importa? Quanto a ti, segue-me.] Mas é possível que o próprio João tenha sido o escritor também deste capítulo (o que explicaria as palavras do verso 24), e o teria feito face à agitação criada pela expectativa da volta de Jesus como um fato a ocorrer logo, dada à avançada idade do apóstolo. Seja como for, o inimigo não poderia tirar proveito de qualquer especulação a este respeito.

Nesse caso, o capítulo, que narra o encontro à beira-mar dos discípulos com o Senhor ressurreto, refletiria uma situação presente no final do primeiro século entre os cristãos da Ásia Menor onde, segundo a tradição, o Evangelho emergiu; isso também indicaria que esta é a época em que o livro foi escrito e concluído.

As palavras dos versos 22 e 23 revelam providencialmente que é um erro equiparar a morte com a segunda vinda de Jesus, como fazem aqueles que afirmam que Jesus volta para o crente que morre. Um fato nada tem a ver com o outro. Os cristãos da época foram levados, precipitadamente é verdade, à conclusão de que o evangelista, permanecendo até que Jesus voltasse, não morreria. Mas estavam corretos quanto à conseqüência desse fato. Realmente, se ele permanecesse até a volta de Jesus, então jamais morreria. Logo, morte de um crente e volta de Jesus são fatos distintos.

Como entender o que Jesus quis dizer? Alguns acham que realmente João permaneceu até ver a volta de Jesus, só que nas visões escatológicas do Apocalipse. Parece, entretanto, que a explicação mais condizente é a que transparece das próprias palavras do verso 23. É como se Jesus estivesse afirmando a Pedro: "Estás preocupado com algo totalmente fora de tua alçada. Tenho plena soberania quanto ao futuro do discípulo amado; este é um assunto que toca inteiramente a Mim, não a ti. Se Eu até quiser que, bem ao contrário do que vai acontecer contigo, ele permaneça até que Eu venha, ‘que te importa?’"

Quarta – Segunda geração

Se o Evangelho foi, com efeito, escrito na última década do primeiro século, então, diferente dos outros três, ele foi direcionado a uma geração cujos membros, em sua totalidade, não tiveram oportunidade de conhecer pessoalmente a Jesus.

Não podemos esquecer que, a esta altura, já haviam passado 20 anos ou mais desde que Jerusalém fora destruída (o evento de 70 d.C era encarado como um sinal da proximidade da volta de Jesus). É verdade que a crença dos cristãos em geral era que o segundo advento só se daria depois da manifestação do anticristo, "o homem da iniqüidade, o filho da perdição" de II Tessalonicenses 2:3. Mas é verdade também que Domiciano, exatamente nessa época, havia ressuscitado a prática do "culto ao imperador", e bem poderia estar sendo considerado, pelo menos por alguns, como aquele que se oporia e se levantaria "contra tudo que se chama Deus ou é objeto de culto, a ponto de assentar-se no santuário de Deus [Domiciano começava a impor sua adoração aos cristãos], ostentando-se como se fosse o próprio Deus" (v. 4). Uma interpretação profética inteiramente fundamentada em fatos do momento, portanto distorcida, ameaçava assim o pensamento escatológico da Igreja; e para tanto concorria, como já referido, a idade avançada do último sobrevivente do grupo apostólico. Por outro lado, o insidioso gnosticismo, com uma alardeada salvação presente, rondava a Igreja e ameaçava também o seu pensamento soteriológico.

Para uma situação tal, em que a fé cristã corria sérios riscos, Deus fez com que surgissem, de uma única pena, duas abalizadas obras: o quarto Evangelho, reiterando que exclusivamente através de Jesus poderia alguém desfrutar uma salvação presente, pois apenas por Ele se obtém o verdadeiro conhecimento, ou gnosis, que resulta em vida eterna (João 17:3); e o Apocalipse, substanciando os reais acontecimentos que conduzirão à consumação final.

Esta nova geração precisava saber que a passagem do tempo não tinha poder para empanar a comunhão de Jesus com Sua Igreja, comunhão que poderia ser alcançada, mantida e intensificada pela recepção do Espírito Santo. Fora em favor disso que Ele havia orado (cap. 17). Precisava saber também que Jesus voltaria para buscá-la e levá-la consigo, quando chegasse o momento certo. Seria diferente conosco hoje, dois mil anos depois?

Quinta – Sua palavra é tão boa quanto o Seu toque

A lição contrasta o toque de Jesus com Sua palavra, e afirma: "no Evangelho de João, raramente encontramos Jesus tocando a fim de operar Seus milagres" O "raramente" está correto porque, em pelo menos uma instância, o toque de Jesus ocorreu: a cura do cego de nascença (9:6); mas mesmo aí a palavra de Jesus se fez presente: "Vai, lava-te no tanque de Siloé" (v. 7).

O quarto Evangelho valoriza a "palavra" de Jesus a partir do fato de que ela O identifica: Ele é o Verbo (1:1 e 14), no original lógos, que significa palavra. Podemos, portanto, verter estes versos da seguinte forma: "No princípio era a Palavra, a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus." Na passagem do tempo, a Palavra "Se fez carne e habitou entre nós" (v. 14).

O termo é empregado umas 40 vezes em todo o Evangelho, quatro das quais para identificar Jesus, e a maioria em conexão com Sua obra salvífica. Sua palavra é: causa e objeto de fé (2:22; 4:41), fator de discipulado (8:31), de cura próxima (5:8 e 9) e à distância (4:50-54), de purificação (15:3), de santificação (17:17), de salvação (5:24 e 51), e, se rejeitada, de condenação (12:48). É pela palavra da fiel testemunha que a fé se expande no tempo e no espaço (17:20). Assim, se hoje cremos, é por obra e graça da palavra.

Outro termo traduzido como "palavra" em João é reÐ ma, empregado umas doze vezes e que tem a ver mais com o conteúdo daquilo que é proferido. Como Jesus é arauto da redenção, este termo também se liga à Sua proclamação salvífica; Ele fala as palavras de Deus (3:34) e são elas que Ele transmite aos discípulos (17:8), e devem permanecer neles (15:7); aqueles que são de Deus (o que está em paralelo com 6:65, o discípulo é concedido do Pai a Jesus) ouvem as palavras de Deus (8:47); é-nos dito que elas são espírito e vida (6:63); são, como Pedro afirmou, as "palavras de vida eterna" (v. 68).

O pensamento chave da lição deste dia, válido para toda a semana, é que, se é verdade que não mais temos a presença corporal de Jesus conosco, é também verdade que Sua Palavra ainda permanece, e que podemos, por ela, entreter viva comunhão com Ele e com o Pai (14:23). É como a lição declara: "Essas são boas-novas para aqueles que, como nós, podem ter a certeza de que, embora Jesus não esteja aqui pessoalmente, Ele ainda pode estar perto de nós em todas as nossas provas e tristezas, por mais difíceis que sejam. ... João nos mostra que, realmente, o Céu está mais perto da Terra do que podemos crer à primeira vista."


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