LIÇÃO 7 – VENDO O SAGRADO NO COMUM

Dr. José Carlos Ramos
D.min., é professor de Daniel e Apocalipse
 

O capítulo 6 é o maior do Evangelho porque traz a narrativa do mais longo discurso de Jesus. Por esta razão, nosso comentário aqui será um pouco mais extenso que os demais.

Geralmente é bom ver o sagrado no comum. O contrário, ver o comum no sagrado, ou considerar comum o sagrado, é sempre mal. Esse foi o problema dos judeus. Não conseguiam discernir o verdadeiro significado das coisas ligadas a Jesus; relacionaram-se com Ele, como diz a Lição, "em um nível material". Como visto nas últimas lições, contemplaram Seus milagres como sendo nada mais que milagres, quando teriam que vê-los como sinais de uma realidade maior que o próprio milagre.

A presente lição continua este pensamento; o milagre da multiplicação dos pães foi visto no nível do comum, meramente da vida física. Quiseram fazê-Lo rei (6:15) simplesmente porque visualizaram nEle alguém que tinha condições para satisfazer a todas as suas necessidades materiais. Claro que isto é verdade em relação a Jesus; mas não era apenas isto que deveriam perceber. O grande objetivo era que discernissem em Jesus o Filho de Deus, enviado para satisfazer a sua maior necessidade, a necessidade de salvação.

É impossível separar as palavras e os atos de Cristo de Sua própria pessoa. Como não conseguiam discernir o significado mais profundo de Seu ensino e obras, não conseguiam discernir a realidade mais profunda de Seu próprio ser.

É verdade! Aqueles que persistiram na incredulidade e no pecado não puderam ver a glória divina em Jesus, e discerni-Lo como Deus, deixando assim de desfrutar o conhecimento que salva. Quando Jesus explicitamente afirmou Sua divina natureza e condição, bem como Sua unidade com o Pai, tentaram matá-Lo (5:18; 10:30-33). Olhando para Ele outra coisa não podiam distinguir senão o véu de Sua carne, isto é, Sua condição humana: "... Te apedrejamos, ... pois, sendo Tu homem, Te fazes Deus a Ti mesmo" (10:33).

Paulo diz que até agora um "véu está posto sobre o coração" dos judeus, portanto rejeitam a Jesus. "Quando, porém, algum deles se converte ao Senhor, o véu lhe é retirado" (II Cor 3:15 e 16). Estas palavras não se aplicam apenas a judeus, mas a todos que não reconhecem a divindade plena de Jesus (e lamentavelmente isto está ocorrendo ultimamente até com alguns que se dizem adventistas!).

Mas o desejo de Deus é que todos obtenham o conhecimento correto da pessoa e ensinos de Jesus. "A vontade de Meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nEle crer tenha a vida eterna" (João 6:40).

A estes adventistas que estão deixando de crer na plena divindade de Jesus, eu diria: "Cuidado para que não venham a lamentar, chegando um momento em que, quando deviam agradecer a Deus dizendo ‘eu era cego, mas agora vejo’, tenham que dizer exatamente o contrário: ‘eu via e agora sou cego!’"

Domingo – Peixes e pães

A narrativa da multiplicação dos pães é comum aos quatro Evangelhos. João informa, exclusivamente, o tempo do milagre e a reação do povo. Quanto à participação pessoal dos discípulos, é exclusiva de João a alusão específica a Filipe e André provavelmente porque, segundo uma tradição, eles eram benquistos na Ásia Menor, berço do Evangelho.

Em João, o milagre é um sinal (v. 14) – uma verdade maior se esconde por trás do fato, indicada aqui pela referência à ocasião do milagre: "a Páscoa, ... estava próxima" (v. 4), e expandida no discurso que segue (vs. 22-71).

A referência à festa, que no ritual religioso dos judeus era seguida de imediato pelos sete dias dos "pães asmos", tem motivos teológicos. No discurso, Jesus Se apresentará como "o Pão da vida" que desce do Céu, e o evento do maná será recordado. Para determinados comentaristas, o milagre e o discurso evocam a Santa Ceia. Talvez, algo a ser salientado quanto a este ponto seja o empenho do escritor de afirmar o profundo significado espiritual desse memorial instituído por Jesus para a Igreja, mas, ao mesmo tempo, demonstrar a completa a inutilidade da ceia (o mesmo se pode dizer quanto ao batismo) como um sacramento, ou seja, uma cerimônia que, em si, pudesse prover a salvação.

A lição lembra também que, ao ser a Páscoa instituída, "o Senhor operou uma libertação poderosa em favor do Seu povo. Embora a alimentação dos cinco mil certamente não tenha sido tão dramática quanto o Êxodo do Egito, ainda assim foi uma manifestação poderosa do poder de Deus em favor do Seu povo, mesmo em sua ignorância espiritual. João deixou claro que muitos dos que tinham seguido a Cristo estavam ali só por causa dos milagres que tinham visto (v. 2) e não por qualquer profunda convicção espiritual de que este era o Messias ou que Ele poderia trazer libertação espiritual".

A participação dos discípulos no milagre é igualmente significativa, e faz uma referência à missão da Igreja no mundo. O "pão" vem de Deus, mas à Igreja compete alimentar uma multidão faminta da verdade. Vinculado a este item, notemos que o relato afirma que, após Jesus alimentar a multidão, sobraram ainda doze cestos de pães (v. 13). Esse número é uma possível referência, pelo menos indireta, à Igreja. Doze é o número de filhos de Jacó, a célula-mater da Igreja no Antigo Testamento, e de apóstolos, a célula-mater da Igreja no Novo Testamento. Os pães foram reunidos de todos os pontos onde havia pessoas; assim, os membros devem ser reunidos de todo o mundo em um só corpo (11:52). Mais duas evidências desta aplicação: (1) Os versos 12 e 13 registram o verbo "recolher" (com respeito ao que os discípulos deviam fazer e fizeram com os pães remanescentes). Esseverbo, no original grego, também significa "congregar", muito próprio da natureza da Igreja; e (2) não é feita menção a peixes que sobraram; só a pães. Nunca o peixe é tomado como símbolo da Igreja; mas o pão sim (ver I Cor 10:17).

O verso 2 afirma que uma numerosa multidão seguia a Jesus. A forma verbal no grego indica uma ação passada de natureza contínua: "continuavam seguindo". Havia, na Galiléia, uma contínua expectativa popular em torno de Jesus. Mas ao final do discurso neste capítulo, a multidão, decepcionada, O abandona (vs. 60-66). A cena se repetirá com os da Judéia, onde O crucificarão. João 6 pode, então, ser considerado o Calvário da Galiléia.

Segunda – Milagre no mar

A lição lembra que a reação da multidão ao milagre não foi positiva, sob a perspectiva da missão de Cristo: "Eles quiseram fazê-Lo rei à força [vs. 14 e 15]; não era isso o que Cristo tinha vindo fazer. A reação deles O levou a afastar-Se." Motivados pelo milagre que testemunharam, sem conseguirem discernir o sinal por detrás dele, intentaram fazer de Jesus rei segundo os conceitos messiânicos da época. Desejavam valer-se dEle para os seus próprios fins.

Nesse ponto, os Sinóticos nos ajudam a entender qual foi a pronta atitude de Jesus face à agitação. Ele "compeliu... os discípulos a embarcar e passar adiante dEle para o outro lado, enquanto Ele despedia as multidões" (Mat 14:22). Foi muito frustrante para eles a atitude de Jesus. Sempre aguardaram com ansiedade o momento em que seria aclamado rei messiânico, e agora, quando tudo Lhe sorria, simplesmente lhes ordenava que se retirassem. Desapontados, depois de algum tempo, tomaram os remos e vagarosamente começaram a atravessar o mar "rumo a Cafarnaum" (v. 17); isso entre queixumes e murmurações, partidos especialmente de Judas, que antes estivera à frente da multidão, incentivando-a (O Desejado de Todas as Nações, pág. 535). Foi nessa situação, que uma tempestade se levantou, colocando-os em perigo. Jesus, então, veio ter com eles andando sobre o mar.

O vínculo deste milagre com o discurso estaria em paralelo com a passagem do Mar Vermelho em relação à experiência no deserto, onde o maná foi derramado, um evento ocorrido logo após a passagem pelo mar. O tema do maná está presente no discurso. O maná está para a multiplicação dos pães e o discurso como a travessia no Mar Vermelho está para o milagre no mar da Galiléia. Aqui o mar não se abre, mas Jesus anda sobre ele. De qualquer forma Ele é o Senhor das águas.

Somos informados pelo evangelista de que os discípulos foram "possuídos de temor" na escuridão, vendo a silhueta de um vulto se aproximando sobre as ondas (v. 19); os relatos paralelos de Mateus e Marcos informam que eles tomaram a Jesus como um "fantasma".

Jesus os acalmou dizendo: "Sou Eu" (v. 20. "Eu sou", no original). Esta forma de Jesus Se identificar (ver também 16:6 e 8) se liga ao nome divino de Êxodo 3:14, a exemplo dos vários ditos "Eu sou" de Jesus em João, e realçam a divindade de Cristo.

O verso 21 afirma que "logo o barco chegou ao seu destino" (eles tinham avançado apenas trinta estádios, de cinco a seis quilômetros, sem Jesus; a largura maior do lago mede cerca de 21 quilômetros, e a menor cerca de 13). João não deixa claro se Jesus atendeu o convite e subiu ao barco. O fato é que um segundo milagre poderia ter ocorrido para que o barco imediatamente chegasse ao outro lado.

João relata o milagre com a identificação e presença de Jesus para corrigir a maneira indevida como a multidão reagiu ao sinal da multiplicação dos pães, tentando aclamar um rei político e profeta, quando, de fato, Ele é um ser que somente o nome divino pode expressar.

Terça – Pão do Céu

O discurso sobre o pão da vida é narrado em nove estágios, a partir do momento em que a multidão encontrou a Jesus até que Ele ficou a sós com os Doze. A lição de hoje cobre os quatro primeiros:

(1) a multidão encontra Jesus – vs. 22-25

Jesus repreende o real interesse da multidão e a adverte – vs. 26 e 27

(2) Primeiro aparte dos ouvintes: "que devemos fazer?" – v. 28

A resposta de Jesus: crer nEle – v. 29

(3) Segundo aparte dos ouvintes: eles pedem um sinal ligado à entrega do maná – vs. 30 e 31

A resposta de Jesus se volta à doação do maná – vs. 32 e 33

(4) Terceiro aparte dos ouvintes: demonstram interesse pelo pão do Céu – v. 34

A resposta de Jesus: Ele Se declara o pão da vida – vs. 35-40

Os versos 22-25 indicam que os que permaneceram no local do milagre procuraram a Cristo no dia seguinte, com o pensamento de que Ele não poderia ter ido para a outra margem, pois sabiam que os discípulos haviam partido sem o Mestre (sem dúvida notaram quando Jesus subiu ao monte, v. 15). Surpresos, constataram que Ele não estava ali, e ficaram intrigados em como conseguira chegar ao outro lado (nas entrelinhas do v. 25). J

João relembra o que eles comeram "o pão", não pães, "tendo o Senhor dado graças" (v. 23). O milagre fica de lado, não é mais mencionado. O mais significativo é o significado do milagre. Este significado desdobra o milagre como "sinal". Os galileus se dirigiram a Jesus chamando-O "Mestre" (v. 25), talvez porque, no monte, Jesus Se assentara na forma dos rabis (v. 3). Então perguntaram quando (não como) havia chegado ali.

Jesus introduziu a resposta (que, por sinal, nada tinha a ver com a pergunta, mas com a disposição de espírito deles) dizendo: "Vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães ["pães" no plural e não no singular, como antes referido pelo evangelista (v. 23)] e vos fartastes [vieram do palco do milagre com o estômago cheio, mas o coração vazio]." (v. 26). Nem mesmo o menor grau de fé Jesus encontrou aqui, fé por se ver "sinais". O interesse é meramente material. Em vez de verem no pão o sinal, viram no sinal apenas os pães.

"Trabalhai" (v. 27) traz o sentido de operar, realizar obras. Como Jesus usou este verbo se a salvação não é pelas obras? Jesus faz um contraste entre os dois tipos de comida mencionados no texto: a que perece e a que subsiste para a vida eterna. A primeira vem como resultado do "suor do rosto" (cf. Gên 3:19: "No suor do rosto comerás o teu pão [perecível, pois o farás] até que tornes à terra..."). A segunda, "o Filho do homem vos dará", isto é, a salvação é "dom gratuito de Deus" (Rom 6:23).

"Que faremos para realizar as obras de Deus?", literalmente, "o que faremos para que operemos (ou trabalhemos) as obras de Deus?" (v. 28), perguntam os galileus, ligando a indagação ao verbo trabalhar (v. 27), que eles aqui repetem, e que foi traduzido "realizar" na pergunta. Eles retiveram mais o trabalhar (o que o homem faz) do que o dar (o que o Filho faz). O método fariseu de salvação é a atuação humana com o fim de alcançar o mérito necessário para qualificar alguém.

A resposta de Jesus (v. 29) realça o valor da fé, e não do esforço humano, e se liga ao verbo dar, isto é, a salvação é um dom, aqui efetivado no ato de Deus enviar o Seu Filho (ou dar o Seu Filho [ 3:16]). Todavia Ele responde em termos de obra, (não obras). A obra de Deus é crer (um ato operado por Deus e que, portanto, O agrada) em quem Ele enviou. Crer, portanto, é executar a obra exclusivamente divina. Tudo isso lembra que tornar-se alguém um discípulo de Jesus é um ato não dEle, mas de Deus (ver o comentário à lição de quinta-feira)

Cristo aqui começa a abrir espaço para as declarações contundentes que faria em seguida, principalmente a afirmação de que Ele é o pão enviado por Deus.

Nos versos 30 e 31, os galileus pedem um sinal, e o relacionam dp a doação do maná por Moisés. Pergunto como podiam pedir um sinal se haviam testemunhado muitos sinais (v. 2)? e ainda mais depois do milagre da multiplicação dos pães? Com isso, mostram que são cegos. Pedem um sinal, isto é, um milagre. Quando o milagre é operado, não vêem o sinal. Querem ver um sinal, mas falham em ver o sinal: o próprio Cristo ("vir o Filho e nEle crer", v. 40).

Nas entrelinhas, pedem um novo maná. Na opinião deles, o milagre de Jesus não se equiparava à doação do maná por Moisés. Estariam, quem sabe, alegando nas entrelinhas essas diferenças básicas entre um evento e outro:

 

Moisés

Jesus

Deu o maná por quarenta anos

Deu pão uma ocasião apenas

Alimentou toda uma nação

Alimentou alguns milhares apenas

Pão do Céu

Pão terrestre, e ainda de inferior qualidade (cevada)

Jesus, então, corrigiu-os, lembrando que Deus, e não Moisés, era o doador do maná (v. 32). Começou a dissipar-lhes as ilusões, mas fê-lo numa forma rabínica de interpretação e ensino:

(1) não Moisés, mas "Meu Pai" (singularidade e distinção em relação aos ouvintes)

(2) não eles – mas vós

(3) não deu – mas dá

(4) não o antigo maná – mas o verdadeiro pão do Céu (e com isto Jesus abre o caminho para Se apresentar como sendo este pão)

Quando Jesus usou o termo "verdadeiro" aqui, não o fez em contraste com o que é falso, mentiroso, mas com aquilo que é temporário, passageiro, e de qualidade inferior. O maná, derramado do Céu no tempo de Moisés, era pão legítimo e mesmo superior ao pão comum da Terra, mas inferior ao verdadeiro pão do Céu, aquele outorgado por Deus na pessoa de Seu Filho, cuja carne e sangue são "verdadeira comida e bebida" (v. 55).

Por outro lado, quando Jesus afirmou que Seu Pai era Aquele que "vos dá", deixou claro que Deus continuava dando (o presente do indicativo no grego tem sentido de continuidade). O contraste entre o maná como nutrição física e o poder de Deus para nutrir espiritualmente vem desde o Pentateuco (ver Deut. 8:3). Lá é a Palavra de Deus que nutre. Mas em João, Cristo é a Palavra (1:1). Cristo e Sua mensagem (6:63) nutrem. Por isso Ele disse: "Eu Sou o Pão"!

O verso 33 caracteriza as qualidades desse Pão que Deus dá:

(1) natureza – um dom

(2) método – desce

(3) origem – do Céu; divindade

(4) resultado – dá vida

(5) escopo – ao mundo

Os judeus pedem pelo Pão anunciado por Jesus. Este os atende, mas rejeitam o Pão, porque ainda pensam apenas no proveito físico, material e imediato.

Jesus Se revela como sendo este pão (v. 35). "Eu sou" é a fórmula usada por Deus no passado, em duas ocasiões principais: o Êxodo (Êxo. 3:14) e na promessa do retorno do cativeiro babilônico (Isa. 41:10 e 27; 42:8; 43:3, 5, 10, 11 e 25; 44:5, 6 e 24; 45:3, 5, 6, 18 e 22). O verbo hebraico haiah tem três sentidos básicos: ser, estar, tornar-se. Estes sentidos se personificam em Jesus: Ele é o grande Eu Sou, e, pela encarnação, é Deus conosco e tornou-Se um de nós. No quarto Evangelho Jesus Se apossa do nome divino para evidenciar Sua natureza, origem e missão:

"O que vem a Mim" – equivale a comer Sua carne (v. 51), pois a promessa é: "jamais terá fome".

"O que crê em Mim" – equivale a beber Seu sangue (v. 53), pois a promessa é: "jamais terá sede" (no grego a negativa é dupla por ênfase; corresponde a "de modo nenhum", v. 37). Embora o crente sempre queira mais do pão e da água da vida (pois não existe algo como alimentar-se de Cristo uma vez e pronto), não há lugar para a fome nem para a sede para alguém que vai a Cristo; fome e sede no sentido de carência, insatisfação, necessidade, ansiedade, desespero, falta de paz. Neste sentido, o comer da carne e beber do sangue do Filho de Deus é um ato consumado.

Quarta – Falando para ouvidos surdos

A lição de hoje engloba parte do quarto e o quinto dos nove estágios do discurso sobre o pão da vida (veja os quatro anteriores na lição de ontem):

(5) a murmuração dos ouvintes: desdenham a condição humana de Jesus – vs. 41 e 42

Na resposta, Jesus expande Sua declaração anterior, esclarecendo que o pão é símbolo de Seu corpo o qual envolve Sua carne e sangue. Também salienta a correta atitude do homem para com Ele, o pão da vida – vs. 43-51

No verso 36, Jesus afirma que, embora os galileus O tivessem visto (sem dúvida alusão ao milagre que Ele havia operado no dia anterior), não criam nEle. O "ver" aqui indica meramente a visão ocular, a visão física comum, insuficiente para conduzir à fé genuína. Na realidade, os verdadeiros crentes são um dom do Pai ao Filho (vs. 37 e 65). Este Se mantém no aguardo dos que o Pai Lhe dá. Indica completa sujeição ao plano do Pai, e também a completa soberania do Pai, mas não significa que o Filho seja essencialmente inferior ao Pai em divindade.

Crer em Jesus nunca será por obra e graça do homem; será sempre um dom de Deus, pois mesmo os seguidores de Jesus são dádivas do Pai a Ele (3:35). Em tudo é salientada a soberania de Deus, e Sua iniciativa para a salvação do homem. A vontade do homem, todavia, é levada em conta (5:40). Mas o ato de alguém ir a Cristo, isto é, crer nEle, é obra do Pai (6:20). E o desejo do Pai é que qualquer pessoa venha a Cristo (6:40).

Este verso e o 65 salientam a origem do ato de alguém crer: o Pai. Todo aquele que é dado pelo Pai a Jesus não será de forma alguma lançado fora. Na parábola das bodas, o convidado sem vestes nupciais é lançado fora do banquete. Significa ficar privado da bênção do evangelho, perder-se. Em Gênesis 3:22 e 23, o acesso à árvore da vida é negada ao homem e em seguida ele é lançado fora do Paraíso.

Assim, Jesus desenvolve o tema da salvação que é auferida num correto relacionamento com Ele. Há um preço, crer nEle, aceitá-Lo, mas os ouvintes não estão dispostos a pagá-lo. Começam a se escandalizar com as palavras de Cristo, murmurando e apelando para Sua humilde origem humana (vs. 41 e 42). Buscam subterfúgios como justificativas pela reação deles. Continuarão a se escandalizar com Jesus até ao ponto de abandoná-Lo de vez (vs. 60 e 66).

Quinta – Vendo o sagrado no comum

A lição de hoje envolve os quatro últimos estágios do discurso sobre o pão da vida, mais o adendo explicativo final do evangelista:

(6) os ouvintes questionam as declarações de Jesus – v. 52

Na resposta, Jesus insiste na necessidade do homem comer Sua carne e beber Seu sangue – vs. 53-58

(7) conteúdo parentético: o palco do discurso é a sinagoga de Cafarnaum – v. 59

(8) a reação dos ouvintes: acham o discurso duro de ouvir (seria de entender?) – v. 60

Jesus responde advertindo-os quanto à necessidade de estarem preparados para maiores revelações de Sua parte, e dando o significado de suas colocações – vs. 61-65

(9) a maioria dos ouvintes se retira. Jesus testa os doze e indica a presença, entre eles, do traidor – vs. 66-70

Adendo: a explicação dada pelo escritor do Evangelho – v. 71

Os galileus continuam a resistir às colocações de Jesus (v. 52). O verbo ‘disputar’ nesse contexto indica uma guerra de palavras; as colocações de Jesus eram assunto de debate. Neste sentido, Ele foi um revolucionário. O escritor registra uma interpretação incorreta ventilada no calor da disputa de palavras: "Como pode este dar-nos a comer a Sua própria carne?"

Jesus responde solenemente que está, de fato, apresentando a eles o caminho seguro da salvação (vs. 53-58). No verso 51, Cristo falou em termos gerais ("...se alguém..."), e apenas do ato de comer. Aqui, todavia, Ele fala explicitamente de "comer e beber", e aplica Sua colocação especificamente aos ouvintes, e o faz na negativa por ênfase: "Se [vós!] não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o Seu sangue, não tendes vida em vós mesmos." É o empenho de Jesus pela salvação deles.

Esta era, todavia, uma idéia repugnante aos judeus devido ao preceito mosaico contra o beber sangue, dado a Israel com alguma insistência (Gên. 9:4; Lev. 7:26 e 27; 17:10-14; 19:26; Deut. 12:16 e 23; 15:23). Naturalmente, Cristo estava falando em termos espirituais; eles, todavia, teimavam em permanecer no terreno material.

A figuração do comer e beber indica que Cristo deve ser recebido no íntimo, e não só integrar-Se ao nosso ser; deve destacar-se como o "novo homem" que passamos a ser após a conversão. Com efeito, Paulo disse que o Cristo que vivia nele era, de fato, seu próprio ser agora manifestado numa nova vida (Gál. 2:19 e 20). E não podemos esquecer que recebemos a Cristo quando recebemos Sua palavra e permitimos que ela se integre à nossa vida.

No verso 57, a dependência que o Filho tem do Pai é um indicativo da dependência que o crente tem de Jesus. Com respeito a Jesus, a dependência que tem do Pai destina-se ao cumprimento de Seu ministério terrestre como ingrediente fundamental do plano da redenção (ver 5:19, 26 e 30).

A dependência e a sujeição filial não indicam qualquer inferioridade divina do Filho em relação ao Pai. Estas são de caráter funcional, não essencial. Quanto ao crente, ele vive por Jesus porque dEle se alimenta. Ele viverá por Cristo e para Cristo, assim como Cristo vive pelo Pai e para o Pai. Fica estabelecido, portanto, o critério de relacionamento do crente com Cristo. Ele é de igual qualidade do relacionamento de Cristo com o Pai.

Finalmente, os dois pães são contrastados (v. 58):

Maná – embora de origem celestial, não possuía nenhuma qualidade comunicativa de vida, salvo no que respeita à nutrição física. Era pão como outro qualquer

Jesus – autêntico pão da vida, comunica energia vital divina.

Os versos 60 a 66 estabelecem um processo de peneiramento. Os que seguiam a Cristo por interesse pessoal compreenderam agora o sentido correto do discipulado. Não estavam dispostos a pagar o preço. No verso 41 são judeus que murmuram. Aqui são discípulos que se afastam.

A palavra "duro" no verso 60 é a tradução de sklerós (de onde vem a palavra esclerose), da raiz de skéllo, secar, de onde deriva esqueleto, ou alguma coisa sem a mínima presença de vida. Principalmente neste Evangelho, água envolve a idéia de vida; sequidão, de morte. No que respeita ao discurso de Jesus, o que era realmente para a vida, entenderam que era para a morte.

A este escândalo inicial sobre Cristo sobrepõe-se um escândalo maior ainda no futuro (v. 62): "Que será, pois, se virdes o Filho do homem subir para o lugar onde primeiro estava?" "Subir" é usado em João com referência à cruz (3:13 e 14). O evento da cruz produzirá maior escândalo. Neste Evangelho, a cruz começa um processo que culmina com o retorno de Jesus ao Pai (13:1-3). Por isso a cruz é o momento da glorificação do Filho. Cruz, ressurreição e ascensão formam um só evento. A cruz será contemplada por todos (12:32); a ressurreição por um maior número de crentes; e a ascensão por um menor número de crentes. Se os ouvintes tropeçam ao ouvir o presente discurso, muito mais tropeçarão no momento da cruz.

O verso 63 é chave para se compreender o tema preponderante do discurso de Jesus: comer Sua carne e beber Seu sangue. Há aqui um contraste entre espírito e carne que merece maior reflexão. O contraste estabelece que o espírito dá a vida, vivifica, e que a carne para nada aproveita. O termo "espírito" corresponde à maneira como Cristo deve ser considerado. O termo "carne", à maneira como os ouvintes O estavam considerando, em termos carnais, materiais, a interpretação literalística de Seus ensinos. Ele explicou que não eram Sua carne e sangue literais que deviam ser absorvidos, mas que o homem deveria se valer de Sua pessoa, Seus ensinos e Suas obras, como meio de obtenção da verdadeira vida.

Os judeus se escandalizaram e rejeitaram a Jesus porque O viram apenas segundo a carne: "Não é este o filho de José...?" (v. 42). Ele apela, então, às palavras que tem proferido, ou seja, o todo de Sua mensagem. Nesse texto, vida é conectada com Suas palavras, ou mensagem.

A pergunta que deparamos neste ponto é: Por que razão estamos seguindo a Jesus? Se não for por nos deixarmos atrair pelo Pai, se for por outros motivos, mais cedo ou mais tarde tomaremos a mesma atitude daqueles discípulos. Eles até ali O seguiram por interesses próprios, interesses materiais, fundamentados numa falsa perspectiva messiânica. Desapontados, frustrados, deixaram-nO, porque entenderam que com Jesus não obteriam aquilo que buscavam. Um, porém, Judas, ainda permaneceu com Ele, impulsionado por um motivo errado; mas aconteceria com ele o que todos sabem.

Os versos 67 a 69 registram o repto de Jesus aos "Doze". Como designação do grupo apostólico, o número é empregado quatro vezes pelo evangelista: 6:67, 70, 71; 20:24. Pedro, como porta-voz do grupo, toma a palavra e responde admiravelmente. "Para quem iremos?..."

O ardor de Pedro não oblitera o conhecimento que Jesus tem da realidade. Um dos apóstolos O trairá. "Não vos escolhi Eu em número de doze?" [escolheu Jesus a Judas? "Doze" pode ser um termo técnico]. Contudo, um de vós é diabo" (v. 70). Judas estava se deixando levar pelo espírito da Satanás.

João 6 pode ser identificado como o Calvário da Galiléia, bem original, pois os galileus rejeitaram a Cristo, o papel de Judas foi referido e ocorreu a confirmação de fé dos verdadeiros discípulos. A impressão de que esta é a realidade se torna mais nítida quando se observa que o tema do discurso de Jesus ali é exatamente a cruz.

Galiléia
Judéia

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