Matrix e a filosofia
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Por Heraldo Aparecido Silva |
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"O que é Matrix?
Controle. A Matrix é um mundo de sonhos gerado por computador... feito
para nos controlar..." [Trecho da revelação feita por Morpheus a
Neo] (Andy
& Larry Wachowski, The Matrix, EUA, 1999). Em 1999, o cinema americano produziu Matrix (The
Matrix, EUA, 1999), um filme, originalmente subestimado, que
arregimentou milhares de admiradores no mundo todo e logo se transformou
em uma referência para outras produções cinematográficas. Um exemplo? Bem... se ficarmos apenas no efeito bullet time,
lembraremos de várias paródias, plágios e "homenagens". O fenômeno Matrix pode ser parcialmente compreendido se
levarmos em consideração a profusão de influências e temas que
aparecem, direta ou indiretamente, no roteiro e nas imagens do filme. Aí
vão alguns exemplos: distopia, esperança, filosofia, 1984 de
George Orwell, artes marciais, cibercultura, agentes secretos e teorias
conspirativas, romance, Alice no país das maravilhas de Lewis
Carroll, messianismo (crença na vinda do Salvador: Jesus, Messias, Buda,
Rei Arthur), mitologia grega e céltica, Admirável mundo novo de
Aldous Huxley, efeitos especiais revolucionários, nova estética
super-heroística (óculos escuros, roupas pretas de couro e sobretudos
substituem, respectivamente, máscaras, uniformes colantes coloridos e
capas), ficção científica, animes e assim por diante. Como não dá
para falar de todas estas coisas em poucas linhas, vamos especificar:
faremos uma rápida comparação entre o filme Matrix e a filosofia
grega de Sócrates e Platão. Para começar, responda rápido: se o contrário de real é irreal, então
qual é o contrário de virtual? Se está se perguntando qual é a relação desta questão com o filme
e a filosofia, respondo: tudo. O filme praticamente começa com a pergunta "o que é
Matrix?". Alguém aí se lembra do diálogo entre Trinity e Neo?
Então... ela lhe diz: "- É a pergunta que nos impulsiona, Neo.
Foi a pergunta que te trouxe aqui. Você conhece a pergunta assim como
eu". E ele: "- O que é a Matrix?". Em seguida,
a jovem conclui: "- Sim, a resposta está aí. Ela está à sua
procura. E te encontrará se você desejar". Mas e a relação desta passagem com a filosofia? Bem, a filosofia
ocidental (o pensamento crítico) surgiu na Grécia Antiga, por volta
do século VI a. C., como uma alternativa ao mito (o pensamento ingênuo);
ela começa através da pergunta "o que é a realidade"?.
De modo geral, naquela época, os filósofos pré-socráticos deram duas
explicações. A escola jônica, que se importava mais com a
observação da natureza (physis) - daí o surgimento da física e
da cosmologia - respondeu que o real é a physis; já a escola
eleática, que se importava mais com a abstração - daí o surgimento
da metafísica e da ontologia - respondeu que o real é o ser (ontos).
Destas considerações, aqui expostas de modo breve e lacunar, originaram
as investigações filosófico-científicas posteriores. Chegou até aqui? Então, não boceje e continue. Lembra da parte em que Morpheus (o deus dos sonhos e filho de
Hipno, na mitologia grega) leva Neo até Oráculo e ela lhe mostra a frase
"conhece-te a ti mesmo". Isso é grego também. É de um
sujeito que mudou o panorama da história da filosofia e da humanidade: Sócrates
(c. 470-399 a. C.), o fundador da ética ou filosofia moral. Por causa
dele, as pessoas passaram a se interessar e estudar não apenas a
realidade exterior (questões sobre a natureza, os astros etc.), mas também
a interior (questões relativas ao ser humano, como política, educação,
organização social, comportamento). Três máximas socráticas ilustram o modo como ele conduziu a sua
existência: 1) "Conhece-te a ti mesmo"; 2) "Só
sei que nada sei" e 3) "A vida sem reflexão não vale a
pena ser vivida". E daí? (geralmente os filósofos perguntam isso). Bem, daí que, na
história de Sócrates, também tem um Oráculo, o Oráculo de Delfos, que
disse para ele que o homem mais sábio de todos era... ele mesmo. Todo
mundo achava isso, menos o próprio Sócrates. Mais ou menos como acontece
com Neo no filme. Quase todo mundo o considera o Escolhido, exceto ele próprio.
Depois, de sua visita ao Oráculo, o ateniense Sócrates passou a
abordar as pessoas e a discutir com elas os mais variados assuntos, no
intuito de achar alguém que fosse realmente sábio, já que ele achava
que nada sabia. Nestes diálogos, sempre colocava em prática as suas máximas:
"Só sei que nada sei" e "Conhece-te a ti
mesmo". Isto significa que o método socrático, elenchus,
pode ser dividido em duas partes: a primeira (destrutiva), com a ironia;
e a segunda (construtiva), com a maiêutica. Para Sócrates, a
sabedoria consiste primeiro no reconhecimento da própria ignorância -
este conhecimento é o passo inicial em busca da sabedoria e envolve o
abandono das idéias preconcebidas. Afinal, "as aparências
enganam" e não queremos ser enganados por elas, certo?... certo
(menos, é claro, para os partidários do Cypher - o traidor no primeiro
filme -, que podem retrucar em uníssono: "- Me engana que eu
gosto!"). Os diálogos socráticos eram inconclusivos, mas, após os mesmos,
acreditava-se estar numa situação melhor do que a de outrora, uma vez
que, embora não se soubesse o que era um objeto em questão, sabia-se o
que ele não era. O método maiêutico consiste em extrair idéias por meio de perguntas;
a imagem é a de que as idéias já existem na mente "grávida"
da pessoa, mas precisam de um "parto" para se tornarem
manifestas. Este "poder da mente" é, de certo modo, sugerido no
filmes em diversas ocasiões: tanto para propiciar feitos extraordinários
quanto para causar a morte do "corpo real" através do virtual. No fim, Sócrates foi injustamente condenado à morte por ter
corrompido - através de idéias inéditas e contestadoras - a juventude,
desrespeitar os deuses e confrontar o Estado. O principal discípulo de Sócrates foi Platão (c. 429-347 a.
C.). A passagem mais conhecida de suas obras, a alegoria da caverna (ou
mito da caverna), está no livro A república. Agora um
pouco de paciência e uma dica para entender o filme a partir desta
perspectiva filosófica: ao ler o trecho a seguir, substitua a
"caverna" pela realidade virtual de Matrix e o
"fugitivo" por Neo e seus companheiros. Platão exemplifica suas idéias sobre filosofia, política e realidade
a partir da dramática alegoria da caverna sobre um grupo de
prisioneiros confinados, desde o seu nascimento, no interior de uma
caverna. Estão acorrentados de uma tal maneira que só conseguem olhar
para frente e tudo que vêem são sombras na parede. Tais sombras são
projetadas pela escassa iluminação fornecida por uma fogueira que arde
atrás deles. Entre a fogueira e os prisioneiros, há uma passagem
ascendente para fora da caverna e através da qual diversas pessoas entram
e saem, fazendo com que os prisioneiros vejam variadas formas de sombras e
ouçam o eco das vozes dos transeuntes. Em seguida, Platão afirma que um
dos prisioneiros, após árdua luta, consegue se libertar das correntes e
fugir. Assim, pela primeira vez, o ex-prisioneiro, pode contemplar algo além
daquilo ao qual estava habituado. Mais do que meras sombras, ele vê a
fogueira, os outros prisioneiros, a passagem ascendente e tudo o mais no
interior da caverna. Depois, quando sai e atinge o mundo exterior, além
de descobrir a existência de muitas outras coisas, é ofuscado por uma
luminosidade ainda maior do que a da fogueira: a do Sol. Atordoado, ele
retorna à caverna em busca de refúgio e, também, para relatar o
ocorrido aos seus antigos companheiros - estes, por sua vez, não crêem
na voz dissonante do fugitivo e se recusam a serem libertados para
compartilhar da mesma ‘experiência’. Em contrapartida, os
prisioneiros também não conseguem convencer o fugitivo de seu suposto
devaneio. Assim, terminam por silenciar, hostilizar e matar o pária
fugitivo. No filme, Morpheus alerta Neo, no "programa de treinamento"
(após ele se distrair com "a Mulher de Vermelho" que, num
piscar de olhos, dá lugar a um "agente" letal), que qualquer um
em Matrix é um agente em potencial. Agora o restante da interpretação. Se considerarmos a linguagem metafísica e dualista de Platão
(luz/sombra, ciência/opinião, essência/aparência), podemos afirmar que
os prisioneiros são a humanidade ignorante - no sentido de
não saber, não conhecer. Em Matrix, eles são representados pela
humanidade prisioneira das máquinas tiranas. As correntes que os retém são os hábitos retrógrados
e nocivos (os vícios, opostos da virtude) que, se não impede, ao menos
dificulta o acesso ao conhecimento. Em Matrix, as correntes também
são nossos pseudoprazeres, a rotina e ilusão de realidade, resultado da
"simulação neurointerativa". Uma vez que as sombras são as únicas coisas que os
prisioneiros vêem - não possuem outros referenciais - é natural que
acreditem nelas como sendo a própria realidade - quando na verdade não são.
Em Matrix, se você está sonhando e não percebe, como pode saber
que tudo aquilo não é realidade? "- Acorde, Neo. (...) Siga o
coelho branco". O fugitivo representa o filósofo, aquele que tem acesso
à luz - ao conhecimento. Em Matrix: é o que desconfia que
está vivendo uma ilusão, como Neo. O percurso até o conhecimento é ascendente e íngreme, assim como a passagem
que une o interior ao exterior da caverna. Da mesma forma que a visão
necessita de tempo para, de forma gradativa, assimilar as mudanças de
tons claros e escuros a que são submetidos os objetos quando passamos das
luzes às trevas e vice-versa; a compreensão e a aprendizagem demandam
tempo, requerem um período para adaptação. Em Matrix recorde o
difícil processo de readaptação pela qual Neo e todos os outros antes
dele tiveram de se submeter. A missão do filósofo (e de Neo ou de qualquer um que se livre do
controle de Matrix, conforme esta interpretação) é conhecer a
verdadeira realidade (sair da Matrix), regressar à caverna
- lugar obscuro, pleno de crenças, aparências e superstições - (voltar
à Matrix) e instruir os demais (em Matrix: libertar todos). Tarefa
nada fácil, já que as idéias retrógradas são predominantes e costumam
condenar, de modo prévio, todo ineditismo (em Matrix: não resista, esqueça,
se submeta para não precisar ser eliminado). Parafraseando Platão, podermos dizer que "a realidade não é o
que alguns apregoam que ela é". A realidade é virtual, é Matrix. Em virtude da extensão do legado platônico, muitas de suas idéias não
foram aqui abordadas; todavia, faz-se necessária uma pequena e lacunar
menção sobre duas noções importantes: a teoria das formas
ou idéias e da doutrina da reminiscência. Para Platão, no diálogo Mênon, o início do processo
de conhecimento é justificado pela doutrina da reminiscência ou anamnese,
uma precursora solução inatista que sustenta a idéia segundo a qual
existe um conhecimento prévio, resultante da contemplação das formas
perfeitas e imutáveis pela alma imortal antes da reencarnação.
Portanto, a partir deste exemplo, podemos notar que é através da teoria
das formas ou idéias e da doutrina da reminiscência,
que Platão defende que o conhecimento é a rememoração. Já no filme,
na barganha que Cypher faz com o agente Smith, ele exige entre
outras coisas, esquecer tudo, não se lembrar de nada. Para finalizar, um pouco de heresia filosófica: o "momento
aristotélico" do filme fica por conta das máquinas. Calma, eu
explico. Antes de seguir suas próprias idéias Aristóteles foi o mais
importante discípulo de Platão. Sistematizador da lógica, ele
valorizava extremamente o conhecimento empírico e as ciências naturais.
Classificava tudo metodicamente, principalmente quando se tratava de suas
investigações no campo da biologia. Se alguém aí falou "Agente
Smith" e "Inteligência Artificial", acertou. Vamos recordar. No universo do filme Matrix, por volta de 2199,
a Terra fica devastada como resultado de uma guerra ocorrida entre humanos
e máquinas. A humanidade não consegue vencer a Inteligência Artificial,
"uma consciência singular que gerou uma raça inteira de máquinas"
(segundo relato de Morpheus), bloqueando a energia solar da qual dependiam
as máquinas. Ironicamente, os seres humanos derrotados tornam-se baterias
de "bioeletricidade" e acabam substituindo a função do Sol,
pois, através de uma "espécie de fusão", são usados para
fornecer a energia de que elas precisam. Na cena em que Morpheus encontra-se prisioneiro do Agente Smith, este
revela que, ao tentar classificar a raça humana, fez uma descoberta
surpreendente: ele sustenta que nós, seres humanos, não somos mamíferos,
porque não entramos em equilíbrio com o meio ambiente. Ao contrário dos
mamíferos, nós nos mudamos para uma área e nos multiplicamos até
consumirmos todos os recursos naturais para depois, mudar novamente para
outra. Segundo o Agente Smith, o "outro organismo neste planeta que
segue o mesmo padrão" é um "vírus". Conforme especulações e notícias divulgadas recentemente sobre a
continuação - Matrix Reloaded - teremos oportunidade de nos
confrontarmos de novo com os golpes, a retórica e a lógica do agente
Smith. Heraldo Aparecido Silva,
professor de filosofia e vice-presidente do Centro de Estudos em Filosofia
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