LIÇÃO 2 – JESUS É O MELHOR

Dr. José Carlos Ramos
D.min., é professor de Daniel e Apocalipse

Introdução

O conhecido prólogo do quarto Evangelho, João 1:1-18, é mais que uma simples introdução ao livro. É um bem elaborado sumário de tudo aquilo que é exposto a seguir. Profundos temas essencialmente cristológicos são referidos de forma direta, objetiva, para serem, no devido curso da narrativa, ampliados e abordados segundo o propósito teológico do escritor. Por isso, deveríamos considerá-lo a chave para uma correta compreensão da mensagem joanina do evangelho. É no prólogo que a presente lição se fundamenta.

Domingo – A Palavra como Deus Eterno

João abre o prólogo com as palavras iniciais de Gênesis 1:1: "No princípio". "Princípio" é a tradução do grego archeÐ , que reúne dois significados básicos: de tempo (começo, origem) e de qualidade (causa eficiente ou razão de ser). O segundo sentido é o de Apocalipse 3:14, onde é dito ser Cristo o princípio, isto é, a razão de todas as coisas (cf. João 1:3). Ambos os sentidos se fazem presentes em João 1:1 e 2. João está afirmando que quando a criação começou, quando a primeira coisa foi criada, não importa se viva ou não, Cristo já estava lá, e que Ele antecede ao começo de todas as coisas, o começo, inclusive, da contagem do tempo.

O evangelista emprega o imperfeito do indicativo do verbo ser, "era", para designar existência contínua, não temporal. Cristo vivia uma continuidade de vida desde a eternidade, quando a criação começou. Lógos não Se vê subordinado ao tempo ou espaço. O termo denota o Ser eterno e imutável (cf. Heb. 1:11 e 12), coloca Jesus na esfera de Deus e, conseqüentemente, revela-O como incriado. O emprego deste verbo em conexão com archeÐ em seu sentido temporal indica que Jesus existia ao a criação começar, e em seu sentido de qualidade, que Ele é colocado onde Deus está.

Em seguida, João registrou um termo altamente significativo para a mentalidade grega: lógos, traduzido em nossas Bíblias como "verbo" ou "palavra". Para os gregos, lógos compreendia dois sentidos básicos: razão (sentido interno) e expressão (sentido externo). Na Bíblia, enfatiza particularmente a revelação. É a expressão de Deus, não tanto na forma absoluta de Seu ser, mas em Sua manifestação. Corresponde ao hebraico dabar, aquilo que sai de Deus para o cumprimento de um propósito. No Novo Testamento, lógos identifica a mensagem de Jesus, o evangelho. João advoga uma personificação da Palavra (compare 17:17 com 14:6), o que, como doutrina, é o ápice do ensino neotestamentário sobre Jesus Cristo.

O Evangelista se valeu de um termo empregado por homens pensantes para ajudá-los a entender como um Deus transcendente Se relacionou com o mundo a ponto de criá-lo e, agora, redimi-lo. João aplicou o termo a Jesus para apresentá-Lo como o Revelador do Deus invisível e inacessível, o Executor de Seus propósitos (1:18); assim, brindou-nos com o verdadeiro conceito do Lógos.

Segunda-feira – Criador e Mantenedor

Como visto, as palavras "no princípio era o Verbo" denotam que Este é incriado, portanto eterno e divino. No verso 3, João confirma este fato afirmando que "sem Ele, nada do que foi feito se fez". O original grego é ainda mais enfático: "sem Ele não se fez nem uma só coisa daquelas que foram feitas". Se Jesus é uma criatura, ficamos apenas com uma alternativa: Ele criou a Si mesmo, o que é um absurdo; como um Ser que não existe poderia criar, fazer alguma coisa. Ele não pode ser senão incriado. Aquele que Se encarnou não é menos do que Deus.

O título da lição de hoje expressa que Jesus, além de criador, é também o mantenedor da criação. Esta idéia é explicitamente declarada em Hebreus 1:3 e Colossenses 1:16 e 17. Em João, o ato de Jesus sustentar as coisas criadas é colocado no contexto da redenção: a "vida" é mantida porque antes de tudo ela está nEle, e é "a luz dos homens", a qual resplandece nas trevas que não a entendem e são superadas por ela (João 1:4 e 5). A idéia é que Ele, além de Criador (isto é, Aquele que executa os propósitos criativos da Deus), é também Revelador (isto é, Aquele que executa os propósitos redentivos de Deus).

A lição pergunta "por que é importante entender corretamente a condição de Cristo na Divindade"? A importância reside no fato de que somente Deus pode salvar o homem. Se Jesus é um milímetro menos que Deus, estamos perdidos. Um simples anjo não reúne as qualificações requeridas para a nossa redenção. Assim, se o perdido não entende corretamente a condição plenamente divina de Jesus, tampouco entenderá corretamente a hediondez e seriedade do pecado, do qual precisa ser salvo; ele não saberá valorizar sua própria salvação.

Terça-feira – Rejeição e recepção

João 1:4 e 5 afirma que o Verbo é tanto vida como luz. Aquela Vida que é a fonte e a manutenção de cada coisa é também a iluminação do homem. O Lógos é a automanifestação da vida divina. Somente pelo fato dEle possuir autoexistência, ou ter a vida que é de Deus, pode ser luz, isto é, manifestar Deus. Apenas Deus revela Deus.

Tanto a vida como a luz são personificadas em Jesus: "Eu sou a luz..." (8:12), e "Eu sou a vida..." (11:25; 14:6); de forma que é indiferente dizer que é a vida inerente ao Lógos ou é o próprio Lógos que é a luz dos homens.

Os termos "vida" e "luz" tocam os dois atos poderosos do Lógos para com o Universo: criação e revelação. Cristo é a causa tanto da existência de todas as coisas como da iluminação intelectual e moral do Universo, particularmente a humanidade. Ambas as coisas, criação e iluminação, ocorrem em virtude do que Ele é.

1:10 afirma que o mundo, feito por Ele, não o reconheceu. "Mundo", nesse contexto, não é o planeta puro e simplesmente, mas a humanidade em geral. Ela não reconheceu o seu Autor! A afirmação tem um sabor de ironia trágica.

O verso 11, então, se volta para o povo de Deus. Que o "mundo" não tenha reconhecido a Cristo é até concebível; afinal "o deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo" (II Cor. 4:4). Mas que o povo de Deus Lhe tenha dado as costas é inadmissível. O evangelista, num tom ainda mais trágico, declara pateticamente: "Veio para o que era Seu, e os Seus não O receberam." Não receber é pior do que não reconhecer, na proporção em que um conhecido tem mais chances de ser aceito do que um estranho. Para os judeus, Cristo não era um desconhecido, ou pelo menos não devia ser (Mat. 21:37 e 38; Mar. 12:6 e 7; Luc. 20:13 e 14). Todavia, não Lhe deram nenhuma recepção, ou, como se diria em português mais exato, "não Lhe deram a mínima", não fizeram dEle caso algum (Isa. 53:3).

Rejeitando a Cristo, os judeus perderam a condição de "povo de Deus" e se identificaram com o mundo. É por isso que, no Evangelho de João, ambos estão em paralelo (7:7; 8:23 e 26; 9:5, 39-41; 14:22; 16:20; 18:20). Assim como o mundo não reconheceu a Jesus, os judeus também não O reconheceram na forma correta (8:19; 10:14 e 26; 16:2 e 3); apenas o conheceram no aspecto meramente físico, humano (7:27 e 28), um nível de conhecimento superficial, que não salva. Assim, eles se tornam uma representação apropriada do mundo.

Felizmente, o aspecto negativo de desconhecimento e rejeição é transmutado, em 1:12 e 13, para o aspecto positivo da aceitação. Sempre houve os que O aceitam. Os judeus são "os Seus" nos capítulos 1-12, mas a partir do capítulo 13 os discípulos passam a ser "os Seus" (ver o verso 1), justamente aqueles que O recebem (1:12). Ironicamente, estes são reunidos de dois apriscos distintos: o judaísmo e o mundo (10:16; 11:52). E os que O recebem serão eles mesmos "recebidos" no lar que lhes foi preparar (14:3). Esta cena é vista no Apocalipse a partir do quadro de Cristo batendo à porta de Laodicéia em 3:20. Será que Laodicéia também vai deixá-Lo fora?

Os que o receberam (ato consumado) são aqueles que "crêem [ato contínuo e progressivo] em Seu nome". Estes se tornaram "filhos de Deus" através do novo nascimento, o qual ocorre "não por vontade da carne [claro, a carne nunca aceita as coisas de Deus], nem da vontade do homem, mas de Deus" (v. 12). A vontade humana não é a fonte do novo nascimento, embora seja levada em conta, pois Deus nunca a violenta. Mas esta experiência foge ao esquema da planificação humana. Uma criança pode ser gerada de acordo com os planos dos pais; uma conversão planejada, entretanto, tem tudo para não ocorrer.

Quarta-feira – A humanidade de Jesus

Aquele que é declarado plenamente divino em 1:1 e 2 é, no verso 14, declarado plenamente humano. Os enunciados da divindade e da humanidade estão em paralelo no sentido de que Aquele que estava com Deus e era Deus, tornou-se homem e passou a estar com os homens. A lição traça o paralelo desse contraste de maneira muito objetiva; e tece, de maneira igualmente satisfatória o contraste entre o verbo ser ("era"), alusivo à divindade de Jesus, e o verbo fazer-se ("se fez"), alusivo à Sua humanidade, através da qual Ele se nivela com a criação (v. 3). Este mesmo verbo foi empregado com referência a outros lances da criação (vv. 6, 10, 15 e 17) e mesmo da re-criação, ou redenção (v. 12).

"... se fez" identifica o âmbito da criação, enquanto "carne" alude à natureza humana completa. Pelo ensino geral do Novo Testamento, os escritos joaninos em particular, entendemos que Aquele que era verdadeiramente Deus, de forma plena, tornou-Se, pelo milagre da encarnação e também de forma plena, verdadeiramente homem sem deixar de continuar sendo verdadeiramente Deus.

A lição pergunta o sentido de "unigênito" aplicado a Jesus, principalmente em contraste com o fato de que Ele é incriado. Em português, esta palavra significa "único gerado", o que transmite a idéia de "vir a ser", passar do estado de inexistência para o de existência. Essa, todavia, não é idéia do grego monogeneÐ s, vertida "unigênito" em nossas Bíblias, e que significa único de sua classe ou gênero, ou simplesmente único, singular; não único gerado (principalmente com conotação de tempo), o que estaria em contradição com o verso 12. O sentido é mais qualitativo que temporal. Por exemplo, em Hebreus 11:17, Isaque é chamado de monogeneÐ s, embora Abraão, seu pai, tenha gerado outros filhos. Mas Isaque era aquele em quem unicamente se centralizava o cumprimento das aspirações do pai; nesse sentido, ele era "único". Daí o valor da disposição de Abraão por sacrificá-lo.

Na qualidade de monogeneÐ s, Cristo é o único de Sua espécie, o único da natureza e essência do Pai, o único que penetra em todos os desígnios do Pai e Se dispõe a ser o revelador de Deus e redentor do homem (1:14 e 18; 3:16). Ele é íntimo do Pai, alvo do Seu interesse, carinho, e amor. Por isso Deus O chama de "Filho amado, em quem Me comprazo" (Mat. 3:17; 17:5). Não crer nEle é desprezar o único recurso de salvação (João 3:18).

Devemos aos pais da igreja a indevida identificação de monogeneÐ s com o latim unigenitus. Orígenes foi o primeiro a lançar a idéia de que Jesus era gerado do Pai antes da criação. Ao eclodir a controvérsia ariana, a ortodoxia aplicou o termo latino ao Filho de Deus, no propósito de realçar a natureza divina de Jesus, já que um filho tem a mesma natureza e essência daquele que o gerou. E o sentido de unigênito acabou permanecendo.

Quinta-feira – A maior revelação

"E o Verbo se fez carne e habitou entre nós..." (1:14). Habitar é a tradução do grego skēnóō, que literalmente significa levantar um tabernáculo, tipo de habitação que, nem por isso, deva ser temporária (ver Apoc. 21:3). Na verdade, Jesus Se tornou um de nós e um conosco para sempre. O termo é quase uma transliteração do hebraico shakan, de onde deriva shekinah, a glória divina que se manifestava no lugar santíssimo do antigo santuário.

A lição corretamente observa que o emprego deste verbo pelo evangelista é "uma lembrança do tabernáculo no deserto". Pode se estabelecer um paralelo entre João 1:14 e Êxodo 25:8 da seguinte forma:

 

ato humano

 

ato de Deus

 
 

seta

 

seta

 

Êxo. 25:8

E Me farão

um santuário

para que Eu possa habitar

no meio deles

         

João 1:14

E o Verbo Se fez

carne

e habitou

entre nós

 

 

 
 

ato de Deus

 

ato de Deus

 

A conclusão óbvia é que na antiga dispensação, o santuário ou o povo de Israel, era o instrumento da habitação divina, e envolvia um ato humano: levantar o tabernáculo. Em João, o corpo de Jesus é esta habitação; em 2:19-22, Jesus fala de Seu corpo em termos de um santuário.

"... cheio de graça e de verdade...", isto é, pleno dos dons de Deus e de Sua fidelidade ao concerto de salvação. Na tradição rabínica, a lei era plena de graça e verdade. Segundo o evangelho, Cristo é a garantia, e a consumação e plenitude (v. 16) de todos estes dons, inclusive da própria lei, que é vista também como um dom (v. 17).

"... e vimos a Sua glória..." Jesus é o novo templo que substitui o antigo. NEle o shekinah divino se manifestou para sempre. Quando, segundo João, ele mesmo viu a Sua glória? Alguns pensam que ele tivesse em mente o episódio da transfiguração, um evento que ele presenciou (Mat. 17:1). Mas no contexto do seu Evangelho, a glória de Jesus não é manifestada apenas em dado momento, mas de forma ascendente no todo do Seu ministério, alcançando a culminação na cruz. Por exemplo, Jesus assegurou a Natanael e aos demais discípulos que, a partir do chamamento deles, veriam o "céu aberto" (1:51). Logo em seguida Cristo manifestou-lhes Sua glória e eles creram (2:11).

João Batista clamou que Jesus tinha a primazia porque "existia" (no original "era", a mesma forma verbal de 1:1 e 2 e que chama a atenção para a divindade de Jesus) antes dele (1:15), em contraste com o seu ministério que, cronologicamente, teve início antes que o de Jesus. A prioridade do Salvador é para ser vista no fato de que, embora historicamente Ele tenha vindo depois de João, no que respeita à existência Ele antecede a João; também ainda no fato de ser Ele o próprio fundamento da missão que João cumpre antes dEle. O que João disse de si e do seu ministério seria dito por todos os profetas que vieram anteriormente, pois todo aquele que se posiciona à frente de Jesus é ladrão e salteador (10:8). Todos os santos profetas da velha dispensação, João incluído, vieram antes de Jesus, mas jamais adiante dEle.

Isto é verdade inclusive com respeito a Moisés, referido no verso 17. Aqui, o evangelista coloca a lei em paralelo com a graça e a verdade. O texto é muitas vezes mal interpretado por aqueles que afirmam que o cristão, através do evangelho, está desobrigado de guardar a lei. Dizem que no Velho Testamento a salvação era pela lei, e que no Novo é pela graça. Nada poderia ser mais estranho à mensagem bíblica. Nunca houve um tempo em que fosse possível se salvar pela lei; salvação foi sempre pela graça. O sentido correto fundamenta-se no contraste entre os verbos empregados: a lei por Moisés foi dada, isto é, não veio a existir (já existia antes; foi apenas dada por Moisés), enquanto a graça e a verdade vieram por Jesus, isto é, a exemplo do que foi declarado no verso 3 com respeito à criação (pois, segundo o original, tanto aqui como lá o mesmo verbo foi empregado), estes dons divinos se tornam possíveis apenas através de Jesus. A graça e a verdade ganham, através de Jesus, a esfera da criação.

Em outras palavras, Jesus é o autor e consumador tanto da obra da criação quanto da redenção. Moisés ao cumprir sua missão, inclusive no papel de receptador e transmissor da lei, testificou acerca de Jesus (5:45-47).

Finalmente, o evangelista fecha o prólogo com as significativas palavras do verso 18: "Ninguém jamais via a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem O revelou."

O escritor, evidentemente, não desconhece as teofanias do passado; tampouco as visões de Deus que os profetas tiveram. O que ele deseja realçar é que Deus nunca foi visto em Seu ser essencial, em Sua transcendência. Cristo, todavia, tem trazido a plenitude de Sua revelação.

O Filho "está no seio do Pai"; há um relacionamento profundamente íntimo entre ambos, o que nos lembra 1:1: "o Verbo estava com Deus." O termo grego vertido "seio" aqui aparece outra vez em 13:25, para expressar a proximidade do discípulo amado ao Mestre, isto é, Aquele que veio da intimidade com Deus abriu-nos espaço para que sejamos íntimos dEle também. O quadro nos revela que a comunhão do Filho com o Pai é normativa da comunhão nossa com Deus, colocada ao nosso alcance através da encarnação.

RETORNAR